segunda-feira, 24 de agosto de 2020

Vergonha da própria saúde

O coronavírus mudou os nossos hábitos. Não estávamos preparados para enfrentar uma quarentena e ainda assim ela nos foi imposta: mesmo despreparados, tivemos de a enfrentar. As pessoas estavam como loucas e a verdade é que poucos saberão dizer no futuro se se tratou de uma quarentena estendida (foram quatro meses!) ou se foi uma sequência matadora de pequenas quarentenas encadeadas. Não importa; de qualquer modo, foram dias estranhos que esmigalharam famílias, destruíram impérios e deixaram ruínas após si.

Pouco a pouco as coisas vão voltando, mas é como se as pessoas não soubessem bem como voltar. Há um sentimento de culpa generalizado. Na semana passada passei à porta de um restaurante. Antes as mesas costumavam estar apinhadas de gente jovem, conversando e bebendo e rindo animadamente; agora as mesas ocupadas por pessoas intercalam melancolicamente com as mesas ocupadas por cadeiras de pernas pra cima. E é deprimente porque há mais mesas sustentando cadeiras do que apoiando copos, pratos, talheres.

E é este o sentimento de culpa a que fiz referência acima. Ora, em tempos normais, as cadeiras colocadas em cima das mesas do bar exercem o mesmo papel social da vassoura posta atrás da porta da casa: umas e outra visam constranger visitantes impertinentes a irem embora. A mensagem que elas passam é universalmente clara: você não é bem-vindo, saia daqui, hashtag-vá-pra-casa. Mas isso, que em tempos normais sempre foi procedimento de fim de noite, hoje é a regra universal da sociedade. Os bares já abrem as portas com as cadeiras expulsando os fregueses que ainda nem chegaram. É como uma casa com uma vassoura permanentemente posta de ponta cabeça à parede da sala, a cuja vista as crianças crescem pensando que é isso o que significa ser um bom anfitrião.

A verdade é esta: o vírus deixou mais que uma pilha de corpos. Infectou-nos a alma, debilitou-nos os modos e evoluiu para óbito a nossa civilidade. Hoje nós sentimos culpa por sermos o que éramos. As pessoas têm vergonha de mostrar o próprio vigor físico; ter saúde é quase uma coisa obscena. Nas lojas, nos bares, nas praças, as pessoas estão desnorteadas -- querendo, precisando estar ali, mas sem saber como se portar. É como se estar saudável fosse ofensivo a quem está doente ou tem medo de adoecer.

E os efeitos devastadores da pandemia podem ser vistos também no futebol. Ontem foi domingo e tivemos, em ordem crescente de importância, dois grandes jogos: primeiro, a final da Champions League no Estádio da Luz; depois, Sport e São Paulo pela quinta rodada do Brasileirão na Ilha do Retiro. E em ambos os jogos vimos acontecer coisas surreais -- ou melhor, vimos não acontecer o que deveria ter acontecido, o que todos esperavam que acontecessem.

Foto: UOL

Duzentos e nove milhões de brasileiros esperaram o menino Neymar fazer um gol. Se fôssemos fazer uma pesquisa, veríamos que para a maioria deles não era nem uma questão de "se", mas de "quando". O gol de Neymar na final da Champions League era esperado não com a esperança romântica do casal de adolescentes à noite, na praia, perscrutando o céu escuro à busca de uma estrela cadente; não, aquele gol se esperava com a impaciência burocrática do trabalhador na estação esperando o metrô chegar para ir ao trabalho.

E, no entanto, para decepção dos namorados e mais horror ainda dos proletários, aquele gol não veio. Era um presságio. Já se via que a partida seguinte, a mais importante do domingo, também revelaria as suas incongruências. Foi dito e feito. 

A estrela Neymar não marcou um gol na final da Champions League e, em assombroso paralelismo, o ataque rubro-negro não furou um gol, um mísero gol, na defesa são-paulina. É o tributo pago aos tempos. Ainda sob os miasmas mal-dissipados da pestilência, as pessoas e os times estão com vergonha da própria saúde. É de pasmar. O mundo inteiro viu pela TV o choro do Menino Ney. Mas, embora o Leão tivesse sofrido um baque ainda maior, todos os vinte e um milhões de rubro-negros souberam sofrer com mais dignidade. É próprio dos sobreviventes saber que a pós-pandemia há de passar.

Nenhum comentário:

Postar um comentário