As coisas são curiosas. O futebol é um esporte cuja etimologia vem do inglês football, e "foot" quer dizer "pé". Correndo o risco de incorrer em um truísmo, é preciso dizer que futebol se joga com os pés. E, insistindo nas platitudes, parece necessário dizer ainda que, em um lance de futebol, meter a mão na bola caracteriza uma infração, foul, uma falta. Encerrando as trivialidades, uma outra informação importante: quando a falta é realizada dentro da própria área, durante uma jogada de ataque do time adversário, isso no geral acarreta um penalty, pênalti.
São regras básicas do futebol com cuja enumeração aqui corro o risco de entediar os meus leitores. Essa revisão meio pré-escolar, no entanto, parece necessária diante de um lance ocorrido ontem na Arena Palmeiras. O jogo entre Sport e Palmeiras estava ainda em 0 x 0. Eram os meados do primeiro tempo quando o Leão avançou. Com perigo, com determinação, senhor de si como vinha fazendo em todo o jogo. Porque esta é a verdade: neste último domingo, à tarde, o elenco rubro-negro estava -- enfim -- mostrando um futebol compatível com o sagrado manto leonino. Diante do líder do Brasileirão, o Sport estava jogando com verdadeira majestade. Mas voltemos ao primeiro tempo. Escanteio para o Sport: um escanteio épico, milimétrico, fatal, um verdadeiro escanteio de capa-de-revista. No meio da trajetória, no entanto, a bola é interceptada: Yerry Mina mete a mão nela e corta, assim, o ataque do Sport. Dezoito milhões de rubro-negros se levantaram para protestar. O juiz não viu ou por outra, fez que não viu; ou pior, viu, mostrou que viu e mandou o jogo seguir. O Palmeiras contra-atacou sobre as reclamações do elenco do Sport; e diante de um time perplexo furou a rede de Magrão.
Coloquemos as coisas em seus devidos lugares. "Meter a mão" não é aqui mera figura de linguagem: o jogador palmeirense levantou completamente o braço, mão esticada, como se fizesse um Heil Hitler macabro, como se fosse um líbero do voleibol entrando no fundo do campo apenas para interceptar a bola rubro-negra.
Há algumas coisas que acontecem dentro das quatro linhas que não são muito comentadas; é como se fosse um submundo do futebol, um lado sombrio que todo mundo conhece mas sobre o qual há um acordo tácito de silêncio. Bem, é preciso quebrar esse tabu. Precisamos falar sobre voleibol.
Malgrado o que diga certa ideologia de gênero esportivo, o jogador não é livre para ser o que ele quiser. Ele não pode ser um centroavante na hora de cobrar o pênalti, um judoca quando for derrubar o atacante adversário e um jogador de voleibol na hora de interceptar o cruzamento. Cada esporte tem as suas regras próprias e suas características naturais. Os que julgam essas exigências muito limitadoras dizem que elas não passam de uma convenção social; bem, se aprouve à sociedade convencionar assim, então é assim que os atletas se devem portar, ao menos dentro das instituições sociais oficiais de cada esporte. No caso do campeonato brasileiro, falamos da CBF. O futebol tradicional pode até ser hipócrita; isso, no entanto, não torna menos injusto que um jogador do Palmeiras meta a mão na bola, dentro da área, para impedir uma jogada perigosa do Sport.
Foto: Torcedores |
Há quem diga que o futevôlei já existe há muito tempo. Bom, primeiramente, futevôlei não é bem futebol jogado com as mãos (este é mais o handebol), senão vôlei com os pés: o objetivo dele é impedir a bola de cair no chão, e não desviar a trajetória da bola metendo-lhe a mão -- mas isso é uma tecnicidade. Segundamente, futevôlei é futevôlei e futebol é futebol; ora, a quem interessa obscurecer as diferenças entre os dois esportes senão aos maus jogadores de um e de outro lado? O futebol será cada vez menos futebol, e o voleibol, cada vez menos voleibol, e o futevôlei, cada vez menos futevôlei, se as regras de um puderem ser indistintamente aplicadas a todos os outros. Quem defende o fim das regras no fundo não gosta de vôlei, de futebol, de basquete, de esporte nenhum. Fazer com que os esportes não tenham regras próprias é acabar com os esportes. Só um perna-de-pau não vê isso.
Para concluir aqui: sempre houve comportamento desviante no futebol, é óbvio. Mas era motivo de vergonha e não de orgulho. Sempre existiu aquele lateral com tendências de lutador de MMA, aquele zagueiro com jeitinho de jogador de vôlei. Não dá para o evitar. Permitir que isso aconteça, no entanto, na cara dura, sob as barbas do juiz, filmado e televisionado, transformado em GIF e em meme, aí já é demais. O zagueiro do Palmeiras metendo a mão na bola, dentro da área, em rede nacional, é mais do que um atleta inconformado dando vazão às suas tendências esportivas íntimas que sempre foram reprimidas sob a opressão de árbitros rígidos e moralistas. Não. Mina, de cabeça e braço erguidos, metendo despudoradamente a mão na bola diante do mundo, é o arauto da desmoralização do futebol, o profeta inconsequente do seu fim. O orgulho do zagueiro alviverde é a vergonha do futebol tradicional.