segunda-feira, 19 de setembro de 2016

Tanto estrago com tão pouco

Nada nessa vida se consegue sem sacrifício, por um lado; nem todo sacrifício recebe o reconhecimento devido, por outro. Esta é a tragédia da existência humana e digo mais: é a grande, a homérica, a shakesperiana tragédia do futebol.

No jogo do Sport contra o Atlético Magrão foi expulso. Magrão, o indefectível, a barreira cuja intransponibilidade é inversamente proporcional à alcunha que o goleiro ostenta. Magrão, o Magno. Era o jogo contra o Galo Mineiro; naquele lance ele estava um pouco mais adiantado do que devia. A bola iria encobri-lo; seria um gol para o time da casa logo no primeiro tempo da partida, seria uma tragédia, um desmantelo. Todos sabemos o que são esses fracassos logo no início. É o dia que começa com o pneu do carro furado, é o encontro onde você troca o nome da menina. Em situações assim o Universo conspira e, parece que por puro sadismo, por pura vontade de ver o circo pegar fogo, faz todas as coisas degringolarem de um modo bruto e fatal. Quantas frustrações não morreriam no nascedouro se algumas pequenas coisas -- se a camisa não se houvesse sujado durante o almoço, se o despertador não tivesse falhado -- tivessem ocorrido de modo diverso...! Guerras haverá que teriam sido desnecessárias, desaparecidas como por mágica junto com a constipação que não se deu. São mistérios do curso das coisas.

Foto: GloboEsporte

Mas de volta à Magrão. O arqueiro viu mais alto e viu mais longe; viu a bola que lhe iria encobrir, a moral do time abatida, a reação que o Glorioso seria incapaz de esboçar. Viu tudo isso em um átimo e decidiu sacrificar-se pela equipe. E, senhoras e senhores, que sacrifício! O mundo antigo não viu um maior em Leônidas no Peloponeso. O goleiro saiu de cena para que o time pudesse prosseguir -- saiu da área, meteu a mão na bola, afastou o perigo. Foi punido, foi expulso, mas preservou o gol do Leão. Dir-se-ia um soldado alvejado que, no entanto, preservara o seu posto; e, ao morrer, tinha ainda nos lábios o sorriso do dever cumprido. Sim, Magrão escorraçado do campo por um árbitro insensível -- incapaz de reconhecer o valor, o sacrifício, a abnegação -- tinha no rosto a placidez de um Templário que expirava fechando a brecha da muralha de Jerusalém.

Mas, mistérios das quatro linhas!, o gol evitado por Magrão foi o próprio estopim da desestabilização rubro-negra que ele quisera evitar. Ou melhor: a expulsão do goleiro provocou no time o impacto terrível de um exército cujo capitão fosse ceifado pelos inimigos. Demorou para se restabelecer e mais: nem mesmo um jogo depois o time estava plenamente restabelecido. A torcida caiu em cima do goleiro reserva; o time não soube dar uma resposta à altura da mal-educação da torcida. A verdade é que, paradoxalmente, tentando não ser ferido, o Leão se machucou naquele cartão vermelho de Magrão. E nunca se fez tanto estrago com tão pouco. Foram apenas dois gols nos últimos dois jogos -- até a minhoca do canal conseguiu furar mais vezes a rede rubro-negra e nem assim foi capaz de fugir da goleada! Mas o futebol é um esporte caprichoso -- e nesses dois míseros gols escoaram seis pontos da competição. Foram os dois gols mais caros que o Glorioso já tomou.

Volto à Magrão. Imagino a sua ansiedade e a sua preocupação; ele deve ter visto o time estiolar, apagar-se, desvanecer, e imagino que talvez tenha maldizido a inutilidade do próprio sacrifício. Mas, não, nobre goleiro, excelso atleta, não te deixes abater assim! A grandeza das atitudes está nelas próprias e não reconhecimento alheio que lhes devotam. Se a torcida não foi capaz de te perdoar é porque não estava no campo, na tua posição; é porque não calça as tuas luvas, é porque não enxerga tão longe quanto tu te acostumaste a enxergar. Salvaste o time uma vez, Magrão, lá em Minas, naquele jogo contra o Galo, naquele lancinante cartão vermelho -- e não importa que os resultados finais não tenham estado à altura dos teus esforços heróicos e do teu abnegado sacrifício. Sim, tu salvaste o time. Não penses mais nisso. Cuida, apenas, de voltar o quanto antes a campo -- para que possas salvar o Leão ainda outras e muitas outras vezes.

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