terça-feira, 13 de setembro de 2016

O sorriso de Durval

Diz o ditado que a cavalo dado não se olham os dentes. Pode significar que não se deve ficar procurando defeitos em presentes; mas pode também significar que, para quem deseja um equino, os seus dentes não são a coisa mais importante. Um bom cavalo deve ter força, músculos, velocidade, porte; um sorriso bonito, pra sair na foto, não passa aqui de artigo de perfumaria.

E o nordestino está condicionado hereditariamente a passar sem perfumaria. São muitas as agruras do sertão e da caatinga, é bastante a dificuldade da vida longe do eixo que hoje recebe todas as atenções. Somos o filho mais velho, eis a verdade: mas o filho cujos esforços foram preteridos no curso da história. Hoje os irmãos mais moços colhem os louros por nós plantados; tudo bem, que louro a enfeitar a fronte também é coisa como dentadura de cavalo. Há quem não viva sem as fotos, e há também quem não possa viver com esta sorte de preocupações estéticas. Aprouve à Providência que nos encontrássemos entre este segundo grupo.

Também há outro adágio popular que diz que, quem ri muito, dá bom-dia a cavalo. Porque há algo de errado com o riso fácil e mais: há um quê de fraqueza, de insegurança, de imaturidade na exposição constante da própria arcada dentária. Os grandes feitos são conseguidos com luta e não com risos. Os sorrisos só abrem as portas que já estão predispostas a se abrirem; para adentrar em uma fortaleza inexpugnável, para ultrapassar um portão trancado contra o nosso avanço, aí se necessita de músculos e pontapés, de aríetes e de investidas, de rostos contorcidos pelo esforço físico realizado.

Veja-se Durval. É o símbolo de tudo isso que estou dizendo. Sisudo e sério, a sua mera colocação na zaga rubro-negra já impõe terror aos adversários, já provoca o efeito de uma carranca a afastar maus espíritos, como já disse aqui. Mas é mais. Em seu rosto rude os traços nordestinos encarnam-se de um modo admirável: dir-se-ia que, em Durval de sobrecenho franzido, está presente e eloquente toda a nordestinidade. De olhar firme, Durval sabe que se exigem mais esforços para arrancar alimentos à terra árida do sertão. De lábios contraídos, Durval demonstra estar preparado para se deparar mais com inimigos dos quais se defender do que com benfeitores a granjear-lhes a simpatia. De rosto fechado, fechando a zaga, Durval encarna o ideal nordestino, de muito esforço e pouco reconhecimento. Não é apenas um jogador, é um ícone, um avatar, um paradigma.

Foto: IBISMANIA

Mas há ainda mais! O nordestino, um forte, acostumado com o lavor quotidiano, com a faina incessante, vê mais longe. Aprendeu a enxergar a plantação verdejante ainda no solo rachado; sabe escutar a chuva que vem mesmo quando a nuvem alvissareira é apenas uma pequena e quase imperceptível mancha no horizonte. Domingo Durval viu mais longe. E, vendo, pôs-se a sorrir. O sorriso de Durval, tão alvissareiro quanto raro, deve ter provocado terror nos tricolores -- se algum tricolor o chegou a ver. Mais até: se a carranca de Durval impõe medo, o seu sorriso provoca pânico e horror. Se da carranca os atacantes temem se aproximar, da mera visão do sorriso todos os jogadores adversários fogem em debandada. Porque há algo de estranho no sorriso daquele que nunca ri. Há um mistério, um augúrio, um presságio. Que perturba os oponentes na mesma medida com que alegra os companheiros.

Eis a verdade: no sorriso de Durval já estava contida a virada rubro-negra. No primeiro gol, quando o Sport recém perdia de dois a zero, o velho Durval -- o mito, a entidade, o sobrenatural Durval -- já via a vitória leonina, já contemplava os cinco gols do Sport. Com a mesma clareza com que o sertanejo vê a grama vicejante onde os visitantes apenas conseguem ver o solo esturricado. A verdade é que, naquele gol, Durval já sabia e já antegozava a vitória, e já saboreava a glória leonina. Aquele sorriso revelava e escondia um segredo incompreensível aos pobres mortais que o flagraram. Depois dele era só esperar a goleada fatal -- que Durval já tinha visto, e com a qual já se alegrava, e pela qual já sorria.

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