segunda-feira, 1 de agosto de 2016

A maldição do centésimo jogo

São muitas as assombrações que povoam o imaginário popular recifense. Mesmo na capital as nossas ruas são repletas de seres fantasmagóricos. É o fantasma da menina que foi emparedada viva por seu próprio pai. É a alma penada da debutante que morreu tragicamente em sua própria festa de quinze anos. É o velho decrépito que come fígados de crianças para aliviar a sua doença. Fossem todas essas personagens sinistras reunidas em um único evento paranormal, dir-se-ia um festim diabólico para Hitchcock nenhum botar defeito.

Estas nossas lendas, nós as alimentamos e mantemos vivas porque elas justificam os nossos fracassos e as nossas frustrações. Ser assaltado por um trombadinha chega até a ser censurável; dar de cara com o temível Boca-de-Ouro ao dobrar uma esquina, aí já é um embate que foge às nossas forças naturais. Enfrentar um moleque de rua é algo de que um homem honrado não pode fugir; escapar da Perna Cabeluda, aí já é proeza de que herói algum jamais conseguiu se gabar. E, claro, fazendo par a esses seres fantásticos há toda sorte de azares, mandingas e maldições -- todos com a mesma taumatúrgica missão de justificar nossos malogros. Pode parecer que o sobrenatural nos condena, mas é o contrário: o sobrenatural nos redime.

Por conta disso há quem busque espectros para justificar as derrotas. Mas há também quem desafie os fantasmas para coroar as vitórias.

Diego Souza completou no sábado o seu centésimo jogo com a camisa rubro-negra no meio de um redemoinho de grandes expectativas. Havia, uivante, a maldição do centenário a lhe assombrar. A camisa 100 não dá sorte e, por outra, serve até de desculpas prévias para eventuais más apresentações. O centésimo jogo, todos sabem, é como um encontro fortuito com algum demônio noturno. Tudo se explica, tudo se desculpa, tudo se perdoa nesses grandes marcos futebolísticos.

Mas para Diego Souza nada disso estava em consideração. O prodigioso meio-campista ri da má sorte e, orgulhoso, altivo, veste a camisa 100 como quem sai destemidamente à noite para caçar Cumade Fulozinha. O encontro com o sobrenatural é para alguns uma desculpa; para ele, é uma oportunidade. E o craque não decepcionou. Ainda no primeiro tempo deu um passe perfeito para Rogério: este, não fosse derrubado na área, certamente abriria o placar para o time da casa. Mas o ceifaram e o juiz marcou o pênalti, o que acabou não sendo um bom negócio para o time do Atlético. Diego Souza se preparou para bater.

E que pênalti...! Eu poderia, como certa mídia filo-sulista, dizer simplesmente que ele converteu a cobrança. O verbo, no entanto, ficaria muito aquém do que foi aquele pênalti cobrado por Diego Souza naquela noite sabatina. Quem me lesse, assim, não teria a clara visão do que foi aquela cobrança. O meia cobrou o pênalti de uma maneira diáfana, sublime, fantasmagórica até. Com a segurança de um artilheiro, com o domínio de si de um cossaco, com a impassibilidade de uma montanha sobre o prado.

A bola foi exatamente onde deveria ir e por outra -- parecia que uma mão sobrenatural conduziu a bola, milimetricamente, até o seu destino. No ângulo, um golaço. Um jogador normal não poderia bater um pênalti daquela maneira: no ângulo a distância do gol à trave, e da trave a fora, é muito pequena para que se possa arriscar. Mas Diego Souza não "arriscou", porque risco pressupõe alguma chance de dar errado. Ora, não havia essa possibilidade. Quem viu aquele gol sabe que não havia essa possibilidade e outra: naquela cobrança onírica a própria trave, se tal fosse necessário, teria decerto se esticado para acomodar a bola de Diego Souza no fundo da rede.

Um craque é um craque. Para ele não existe gol fácil, não existe cobrança protocolar. Todo chute é um show, todo gol é um espetáculo. Um craque de verdade come maldições com farinha. Para ele todo jogo é uma apresentação, e a centésima exibição do craque rubro-negro não poderia ser diferente. Aquela foi a noite que calou as maldições e impôs silêncio às assombrações recifenses. Para ver Diego Souza jogar os próprios seres sobrenaturais da cidade quedaram-se em silêncio, na arquibancada da Ilha, boquiabertos e assombrados.

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