Há certas coisas que mesmo no futebol brasileiro são extravagantes e parecem forçação de barra. Por exemplo: dois pênaltis no mesmo jogo em favor do mesmo time. Ora, o árbitro já não é a personagem futebolística mais amada de todas; marcando duas penalidades máximas em sequência, assim, fica difícil fugir à impressão de favorecimento. E a figura do juiz ladrão é problemática no futebol. Porque existe aquela sensação, tão humana quanto saudável, de que um jogada mal feita é, ao fim e a cabo, responsabilidade de quem jogou mal. A meritocracia no futebol funciona que é uma beleza. Agora, uma jogada desempenhada com maestria, mas tolhida pelo apito -- ou pela ausência do apito -- do árbitro, aí já é uma injustiça que clama aos céus. É algo com que não se pode conformar, que come por dentro, que se fica remoendo, tirando o sono e abrindo as úlceras.
Veja-se por exemplo o último jogo do Sport. Quando Rogério avança impávido, colossal, desbaratando a defesa do Figueirense como quem espanta um enxame de moscas com um balançar de mãos, tudo isso para, ao final, explodir a bola em cima de Thiago Rodrigues: é uma frustração passageira. Xinga-se o jogador por um átimo apenas; no instante seguinte já se está torcendo pela próxima jogada.
Agora uma outra cena. Edmilson invade a área. Somente ele e o gol do Figueirense. Chuta. Perde o gol. Atrás dele, no rebote, Rogério. Rogério matador. Rogério esperança leonina. Rogério em cujas chuteiras estão concentradas todas as esperanças de dezoito milhões de rubro-negros. Rogério prestes a decidir o jogo e mais que isso: parece que está escrito nas estrelas, determinado pelos astros, que Rogério vai liderar a virada do Leão.
Nos umbrais da vitória, no entanto, no limiar do grito de gol que já ensaia a sua saída triunfal do fundo da garganta do torcedor, Rogério é cavado. Impiedosamente massacrado por trás, derrubado com uma brutalidade que o futebol jamais viu tão cínica e tão descarada. Foiçado de maneira vil e covarde, às escâncaras, nem sei como as pernas de Rogério não foram partidas em duas. Atônitos, todos olham para o juiz. O juiz, com cara de paisagem, finge que não é com ele. A bola corre pela linha de fundo -- e com ela as esperanças rubro-negras.
Eis a verdade: o juiz não marcou aquele pênalti e não o teria marcado nem mesmo que as pernas de Rogério tivessem sido quebradas em duas. Nem mesmo que o atacante tivesse sido partido no meio pela brutalidade da falta do furacão alvinegro. Não o marcou porque pensa que tem uma cota a cumprir. E eis o ridículo dessa história toda: por imaginar que já tinha cumprido a sua cota, o árbitro já estava previamente condicionado a não marcar nenhum pênalti em favor do Sport. Por julgar já ter sofrido o seu quinhão de penalidade, o Figueirense se julgava autorizado a exterminar o ataque rubro-negro, a devastá-lo, torar-lhe as pernas, sem que lhe adviesse por isso a menor punição. E até o torcedor rubro-negro, até o próprio prejudicado, por já ter obtido um pênalti em seu favor dez minutos atrás, ficou com escrúpulos de pedir -- de novo -- o pênalti claro e cristalino, o pênalti paradigmático, o pênalti que poderia constar nos cursos de arbitragem como exemplo de pênalti e que o próprio Platão, se o visse, diria estar diante de um ente exsurgido miraculosamente do mundo das essências puras. Ninguém achou devido aquele pênalti -- que, no entanto, foi talvez o pênalti mais escancarado do campeonato.
E no pênalti não marcado selou-se o empate. Cujo gosto é amargo porque se sobrepõe a uma vitória que a torcida chegou a vislumbrar. Eis a verdade: do chute desperdiçado de Rogério o comentarista esportivo não vai nem se lembrar amanhã. Mas Rogério chacinado, ensanguentado no chão, abatido como um porco, com as pernas partidas ao meio para não chegar ao gol catarinense, e todos virando o rosto para o outro lado, e todos fingindo não ver -- essa imagem haverá ainda de nos assombrar por muito tempo.
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