As coisas nem sempre são exatamente como parecem, e no futebol como na vida às vezes os adversários contra os quais precisamos pugnar não se nos apresentam do outro lado da arena, às claras, fazendo a boa e velha guerra honesta dos barões medievais. Pelo contrário. Às vezes o verdadeiro inimigo é insidioso e se nos acerca sorrateiramente. Certos combates nós nem sabíamos que precisaríamos lutar até nos ver em meio a eles ou por outra: às vezes os outros nem vêem as lutas que estamos travando.
A ingratidão é esta desproporcionalidade entre o esforço empenhado e o reconhecimento recebido. Ou por outra: o ingrato recebe mais do que dá, mais do que reconhece, levando ao surgimento de uma espécie de mais-valia relacional que expropria o esforçado, o comprometido, o que se importa. Acho até que, se perscrutarem direitinho, verão que é provavelmente na indiferença e não na propriedade privada que se encontra a verdadeira origem da desigualdade entre os homens.
Mas o pior é isto: o ingrato não faz por mal. Os cavalos do coche real mastigam os lírios brancos colhidos para o filho do rei sem que este tenha a menor consciência da tragédia que recende daquelas flores maceradas. Talvez Marius não ignorasse Éponine por perversidade; talvez apenas os seus olhos ofuscados por Cosette o tornassem cego a tudo o mais. Talvez Roxie Hart simplesmente não visse os esforços do seu marido para lhe tirar da prisão -- no entanto, quanta dor em Mr. Cellophane! A ingratidão é invisível porque se esconde por dentro da carne alheia; quem não a sofre não a vê.
Veja-se o Sport. Fez ontem uma das mais extraordinárias partidas do ano e mais: conquistou uma de suas vitórias mais estrondosas. Dir-me-ão que o jogo acabou em um a um; eu retrucarei que nem todas as vitórias exigem um placar positivo. Ora, o Leão foi vitorioso porque lutou de uma vez só não apenas contra um, mas contra quatro adversários simultaneamente lançados contra si.
Foto: ESPN |
Lutou contra o Internacional e foi a luta que todo mundo viu. Mas precisou lutar também, antes mesmo de entrar em campo, contra o desfalque do seu próprio elenco. Diego Souza e Rogério, contundidos, não poderiam jogar; e a luta contra as próprias limitações é, sempre, a mais encarniçada das lutas. Lutou, ainda, contra a arbitragem, que fez questão de iniciar o jogo dando um a zero para o time gaúcho, de graça, marcando um pênalti que ninguém viu. Tivesse Seijas dado um mortal circense dentro da área e o pênalti não seria mais pateticamente marcado. O placar já começou, assim, em desvantagem para o Leão. Mas o Sport lutou também, e foi a luta talvez mais cruel, contra a torcida rubro-negra.
Qual o público na Arena Pernambuco? Cinco mil torcedores? Ora, dezoito milhões de rubro-negros, e apenas cinco mil comparecem ao jogo? A um jogo aqui em Pernambuco? A punhalada é por demais dolorosa -- a ingratidão, onde medra, sufoca. A indiferença machuca, aniquila, destrói: e como pode o clube jogar na sua própria casa se os seus próprios torcedores, desempenhando o papel do desprezo, recusam-se a ver o time jogar? A torcida, cansei de dizer, é a mulher do time. Que homem não se esforça por ser melhor quando sabe estar sob o escrutínio daquela que deseja? E, a contrario sensu, como pode o cavalheiro cortejar a dama que não se encontra presente?
Lutando contra tantos adversários ao mesmo tempo, qualquer time teria sofrido uma goleada. Foi até covardia. A despeito de tudo isso, contudo, o Leão não se deixou desanimar. Ergueu a cabeça e lutou contra o time gaúcho e contra o desfalque do próprio time, contra o sr. Grazianni Maciel Rocha e contra a própria torcida rubro-negra. Contra todos e contra si mesmo chegou ao gol no final da etapa complementar e eu digo: jamais se viu um gol tão suado! Foi um gol e quatro vitórias em um chute só. Jamais foi tão grande o mérito de enfiar uma bola por sob a trave adversária. Naquele rede balançada Vinícius Araújo abatia o Inter e vingava o árbitro, a natureza e a ingratidão da torcida. Merecia, sozinho, o troféu do campeonato.