Dizíamos que o problema era a defesa. Afirmávamos ufanos ser dotados de um ataque matador; confessávamos no entanto, primeiro entre sussurros, depois gritando de telhados cada vez mais altos, que de nada adiantava o ataque fazer a parte dele e a defesa entregar tudo lá atrás. Na verdade vivíamos em uma guerra interna, e isso nos tornava fracos perante os outros. Tudo isso, nós o cansamos de repetir. Hoje não o precisamos mais. Hoje não.
Ontem tudo mudou. No meio do caminho havia não uma pedra, senão uma rocha, uma muralha fechando o gol. O Cruzeiro não o sabia e foi esta a sua ruína. O jogo já estava em dois a zero para o Sport, e os acostumados com o futebol matemático e frio dos ditos grandes clubes do sudeste talvez não percebam a angústia deste placar. Nos píncaros olímpicos do futebol das elites talvez a distância de dois gols seja demasiado longa para ser transposta; aqui, dentre os herdeiros diretos do futebol de várzea, que se joga com garra, com sangue, com a vida, dois gols se fazem ou se tomam no intervalo de se buscar a cerveja no refrigerador. Não é placar para se estar tranquilo e nem tampouco para entregar a toalha.
Estava o placar em dois a zero, e eis que o Cruzeiro avança. Sabe que o jogo não está perdido; avança furibundo, com a paixão de quem se vê no limiar de uma vitória gloriosa. Avança como quem sente nos dentes o gosto de sangue. Avança como jamais o futebol brasileiro viu um avanço, e como talvez não volte a ver jamais. Avança, limpa, chuta.
E que chute! Tivesse aquela bola seguido o seu curso normal e o Sport, agora, estaria derrotado. Tivessem as leis da física sido estritamente observadas e o Cruzeiro estaria até agora ecoando o seu grito de gol -- merecidamente. Mas entre a matéria bruta e a histeria coletiva havia algo inesperado. Havia um homem -- que digo? Havia um herói. Um monstro. Um ídolo. Um deus.
Havia Magrão, e ele não se importou com o fato de aquele chute ser indefensável. Pulou com garra e determinação, como se saltasse por sobre um espaço infinito, como se fosse até as profundezas do abismo para cumprir o seu dever. Saltou como se gritasse ¡no pasarán! diante de um exército reacionário franquista, com a diferença de que aquele chute fora mais perfeito que qualquer investida que o general Franco pudesse um dia comandar.
Franco passou sobre Madrid. Aquela bola não passou por Magrão.
E naquele chute neutralizado pelo goleiro do Sport o Cruzeiro enfim estava derrotado. Dois gols de Rogério não lograram abater o time mineiro; um salto de Magrão deu cabo ao adversário. Dali em diante foi tudo uma questão de meras formalidades, o escoar dos minutos, o correr da bola sobre o gramado, o apito do árbitro apenas reconheceu o que já estava perfeito e acabado no mergulho de Magrão. Dir-se-ia que ia abaixo o Mineirão; era, ao contrário, o Glorioso que galgava três posições na tabela.
Mas não foi apenas isso: subiu sua moral e sua capacidade de se impôr. Ataque e defesa enfim fizeram as pazes sob o mesmo manto rubro-negro: e esse armistício foi uma declaração de guerra contra os seus adversários.
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