sexta-feira, 29 de julho de 2016

O chinelo emborcado

O nordestino é supersticioso. Pode parecer bobagem, mas nós crescemos em meio a este mundo cheio de regras arbitrárias e incompreensíveis. O santo Onofre precisa ficar de costas para a entrada da casa. Atrás da porta, a ferradura pendurada traz sorte. O chinelo emborcado chama morte, assim como dá agouro abrir o guarda-chuva dentro de casa. 

Os exemplos são diversos e, embora possam à primeira vista parecer ignorância, são na verdade um elemento cultural de alto valor pedagógico. A sandália com o solado para cima que precisa ser desvirada sob pena de alguma tragédia inominável nos ensina duas coisas: primeiro, que há causa-e-consequência no mundo; segundo, que as coisas podem ter desdobramentos que não são perceptíveis à primeira vista. Na verdade, é esta específica compreensão de mundo o que está por trás da nossa secular superstição. Não é o pé-de-coelho o que importa, e sim aprender a não julgar as coisas somente de acordo com as aparências. Toda pessoa supersticiosa tem mais visão espiritual do que um racionalista; quando menos, porque aquela mantém o espírito sempre aberto ao desconhecido.

Claro que esta nossa superstição haveria de encontrar reflexos no futebol. Atualmente, o caso mais emblemático é Durval ou, antes, o papel desempenhado pelo zagueiro na defesa rubro-negra. Não falta quem desdenhe do veterano, quem deseje escalar o elenco deixando-o de fora; a hipótese, no entanto, não deixa de provocar uma espécie de desconforto. Procuramos disfarçar, mas a verdade é que o Sport sem Durval nos provoca aquela mesma sensação incômoda que temos diante de um chinelo emborcado.

O zagueiro é conhecido por jamais sorrir. Talvez nem o seu dentista tenha jamais lhe visto os dentes. Isso pode parecer falta de educação; no entanto, se olharmos com mais atenção, perceberemos que se trata simplesmente de uma sadia postura de guerra. Nos combates não convém aos soldados adversários trocarem sorrisos afáveis. As relações exatas entre essas coisas nos escapam: mas a verdade é que o rosto sério de Durval, talvez não saibamos o porquê, nos provoca a segurança de uma casa cujas portas estão, todas, guarnecidas com ferraduras de cavalos campeões.

Durval é uma carranca que, simplesmente posta à entrada, de sentinela, é capaz de afugentar eficazmente os maus espíritos. É Adamastor fechando a passagem à ousadia dos navegantes. A imagem aterradora, o olhar firme, os lábios apertados, o semblante mais carrancudo que as próprias carrancas do São Francisco: diante de figura tão atroz as pernas dos atacantes bambeiam e a própria bola, que um instante atrás corria lépida em direção à área rubro-negra, perde a coragem e vai se esconder atrás das pernas do primeiro gandula que encontra.

O maior desafio do Sport amanhã não vai ser invadir o campo do Atlético: isso o time é capaz de fazer com um pé nas costas. A sua maior missão, a última e derradeira, aquela da qual depende a vida e a morte, será conter o ataque paranaense sem a figura sisuda de Durval, sem o talismã rubro-negro, sem os sortilégios que emanam da sua presença hierática.

Penso que o time devia mudar o padrão e, amanhã, promover uma pequena alteração no uniforme rubro-negro. Em tamanho sobre-humano, cobrindo toda a frente da camisa, deveriam colar a cara de Durval, enorme e ameaçadora, de cenho franzido e olhar assassino. Seriam onze Durvais correndo pelo campo da Ilha do Retiro, avançando contra o Atlético, provocando mais terror que uma horda bárbara surgida no horizonte de uma pacata vila medieval. Diante desta visão dantesca, tenho certeza, o elenco visitante não seria capaz de esboçar nenhuma reação -- e a bola, procurando onde se esconder, acharia o fundo do gol paranaense o lugar mais seguro do campo.

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