sexta-feira, 22 de julho de 2016

A teimosia nordestina

Ao tomar contato com Canudos, o jornalista Euclides da Cunha escreveu certa vez que o sertanejo era, antes de tudo, um forte. Talvez pelo nosso hábito de a tudo que vem do sul corrigir, o fato é que há muito emendamos aquela página clássica d'Os Sertões: e hoje se diz abertamente, em conversas, em mesas de bar, em páginas de jornais, em citações acadêmicas, mesmo entre aspas, que quem é antes de tudo um forte é o nordestino e não apenas o sertanejo.

A voz do povo tem a sua razão: o nordestino é forte mesmo longe da caatinga. E esta força particular do nosso povo não se encontra em nenhuma compleição física sobre-humana, em nenhuma perspicácia intelectual mais aguda. Não temos dos helênicos nem o físico das estátuas gregas e nem o gênio dos primeiros filósofos. O que temos, no entanto, é mais valioso e mais importante, é algo que Platão não pôde sequer imaginar e que Ulisses, por mais que houvesse tentado, não logrou encontrar em suas viagens. O que temos, senhoras e senhores, é a nossa teimosia, a nossa tradicional, proverbial, paradigmática teimosia.

Atenção, que teimosia não é o mesmo que tenacidade ou obstinação. É fácil ser tenaz quando se é, por exemplo, Aquiles emergido invencível do Estige: assim qualquer um promove mil campanhas contra mil Tróias. Difícil é lutar quando os calcanhares só estão marcados pela lama seca dos leitos dos rios. É fácil a Sócrates ser obstinado quando se tem um destino glorioso vaticinado pelo próprio Oráculo de Delfos: assim qualquer um bebe mil cálices de mil ervas venenosas. Heróico é seguir em frente quando não se possui destino que algum Oráculo possa perscrutar.

A teimosia, em uma palavra, é isso: é continuar fazendo o que se deve fazer, ainda que não haja razoável perspectiva de êxito. Pense-se num burro que empaca. Acaso já se viu um burro que conseguisse empacar-se para sempre, o empacamento último e definitivo? Desde que o mundo é mundo que os burros, empacados, são tocados à força: no entanto, desde que o mundo é mundo eles teimam em continuar empacando.

A força do nordestino é o empacamento do burro ou, antes, é a serena presença de espírito com a qual ele realiza aquilo que -- todos vêem! -- está fadado ao fracasso. O malogro não o faz titubear por um segundo, a ameaça da derrota não o perturba um átimo: ele segue em frente com o vigor de uma fatalidade física. Com a força de um desmoronamento. Com o alheamento de um cataclisma da natureza.

Alguém pode dizer que isso faz o nordestino ser fraco; eu, por outro lado, insisto que é isso que o torna forte. E perigoso. A pedra que rola montanha abaixo é um risco para quem se encontra no caminho. A fera empacada é um perigo para quem tenha pressa de chegar. A presença de diques não faz o curso furioso das águas retroceder. O azorrague não faz o asno dar um passo à frente sequer.

Assim é o futebol nordestino, assim são os nossos clubes: indóceis aos cálculos das tabelas, não irão simplesmente sair do caminho para facilitar a passagem dos importantes. Por outras vezes, indômitos, seguirão atropelando, insensíveis a tudo, derrubando árvores e construções, deixando atrás de si um rastro de destruição. Isto o que quero dizer: somos imprevisíveis, teimosamente imprevisíveis -- e o imprevisível provoca terror. Às vezes caímos até a série D somente para voltar, implacáveis, degrau a degrau, à elite do futebol. Às vezes fazemos campanhas medíocres para em seguida avançar inexoráveis, palmo a palmo, no mata-mata, por entre os grandes clubes do Brasil, até o troféu. É nesta teimosia bruta e alheia a tudo -- como se a cada instante tudo começasse de novo, como se a cada momento apenas ele importasse a nada mais -- que se encontra a nossa maior força e o maior trunfo dos nossos clubes; tivesse essa teimosia, Aquiles teria sobrevivido à Guerra de Tróia!

Estamos iniciando o final de semana; vamos à 16ª rodada do Brasileirão. Podia ser a primeira; podia ser a última! Os nossos clubes haverão de jogar como se nada mais tivesse havido antes, como se nada houvesse ainda por existir. Dois clubes, o Coritiba e o Cruzeiro, enfrentarão os times do Nordeste; dois clubes não saberão o que os espera. Somos nordestinos sem passado e sem futuro: assim, no gramado, cada partida é como se fosse a única. Há quem diga que é nossa fraqueza -- e pode ser que tenha lá a sua razão. Mas eu continuo dizendo que, antes, é a nossa força. É o que nos torna notáveis. É o que nos faz continuar.

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